O ministro Mantega faz vista grossa para o aparelhamento da Receita Federal e quando decide domar o corporativismo descobre que ele ruge alto e morde forte

Adriana Nicacio, Claudio Dantas Sequeira e Hugo Marques

AMEAÇA Mantega reagiu com demissões em massa, mas o perigo maior é que o desmonte provoque queda na arrecadação

Há um ano, quando o ministro da Fazenda, Guido Mantega, decidiu substituir o secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, herdado do governo do PSDB, por uma funcionária de carreira, Lina Vieira, sabia que estava entregando o comando do órgão para sindicalistas ligados ao PT. A idéia era ter dirigentes mais afinados com a política do governo. Durante este período, o aparelhamento de uma instituição de Estado ocorreu sem incomodar a ninguém na Esplanada dos Ministérios ou no Palácio do Planalto. Nas últimas semanas, porém, o Fisco afundou numa crise sem precedentes e tranformou-se de Leão, o símbolo da Receita, em um verdadeiro saco de gatos - mas com a mesma força para morder e a mesma gana para rugir como os grandes felinos.

Em menos de dez dias, mais de 50 servidores da Receita pediram exoneração de postos de chefia. A rebelião é consequência do aparelhamento sindical promovido por Lina. Tudo começou no mesmo dia em que Mantega decidiu afastar a secretária. Reunido com 10 superintendentes regionais, o ministro se assustou com a ascendência de três auditores sobre os demais. Luiz Sérgio Fonseca Soares, de São Paulo, Eugênio Celso Gonçalves, de Minas Gerais, e Dão Real Pereira dos Santos, do rio Grande do Sul que incitavam os colegas a deixarem os cargos em solidariedade a Lina e se negavam a ser chefiados pelo presidente do INSS, Waldyr Simão. Espantado, Mantega cedeu às pressões e nomeou Otacílio Cartaxo para o cargo.

O grupo de sindicalista acalmou-se. Mas o ministro concluiu que não podia ficar à mercê de três auditores e resolver iniciar uma degola de forma discreta. Começou pela chefe de gabinete, Iraneth Weiller, e pelo assessor especial, Alberto Amadei Neto, em seguida deu ordem para demitir os três superintendentes problemáticos. Prestes a saírem, Luiz, Eugenio e Dão cobraram a fidelidade dos companheiros. E a Receita entrou em uma crise inédita para decepção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que culpou Mantega pela desastrosa nomeação de Lina.

No Ministério da Fazenda, ela agora é acusada de ter cedido às pressões da ala mais radical do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Unafisco) e de ter transformado a cúpula do órgão num braço do sindicato. Durante a curta gestão de Lina, Mantega concluiu que quem, na verdade, comandava o órgão era Amadei Neto, ex-militante ativo na Delegacia Sindical do Ceará. Além disso, as nomeações para as principais superintendências foram encabeçadas por um dos líderes da Unafisco, Paulo Gil. Segundo levantamento obtido por ISTOÉ, Lina gastou boa parte de seu tempo de trabalho para eleger a nova direção do Unafisco.

As dispensas de todos os auditores fiscais por motivo de congressos e eventos sindicais saltou de 15 mil dias para 30 mil dias. Ou seja, em menos de um ano, as folgas para a atividade sindical dobraram. Mantega reclamou por várias vezes da ausência de Lina de Brasília. Ele chegou a se irritar com a frequencia com que ela viajava. Mas era tarde demais. Na semana anterior à demissão, Lina havia voltado de uma viagem de trabalho a Paris, com oito assessores. "Ela levou oito pessoas a Paris, mas quando vou à reunião do FMI levo a metade disso", desabafou o ministro com amigos, depois de descobrir o tamanho do problema.

Lina, então, passou a ser acusada de desmantelar a fiscalização da Receita. A ex-secretaria alegou que o mecanismo antigo, que fiscalizava 20% das empresas e dos grandes contribuintes por ano, era defasado e focava apenas nos "velhinhos". Mantega aceitou a modificação, mas não imaginou que Lina fosse convocar 10 mil empresas a entregar seus dados, que seriam avaliados por menos de dez pessoas. Com o novo método de fiscalização, segundo a versão do governo, a arrecadação caiu. A equipe comandada por Lina alega que a queda ocorreu pela extinção da CPMF, renúncia fiscal devido e desaquecimento da atividade econômica devido à crise financeira. Para reforçar a sua tese, Lina recebeu o apoio de outra instituição do governo apontada como um braço político do Palácio do Planalto, mas que, agora, une esforços corporativistas: o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O diretor de Estudos Macroecômicos, João Sicsú, divulgou relatório corroborando com a versão de que a queda na arrecadação de impostos está "diretamente ligada à deterioração da economia brasileira e as desonerações".

"Hoje há coordenadores e chefes ociosos. A crise só vai acabar quando houver um desaparelhamento"
Paulo Antenor de Oliveira, presidente do Sindireceita

Os servidores que deixaram cargos de confiança na Receita fazem parte do grupo derrotado na última eleição da Unafisco. Todos têm histórico sindical e foram referendados pelo Campo Majoritário do PT. Lina foi nomeada com a bênção do secretário-executivo da Fazenda, Nelson Machado, que se encantou com a dedicação da funcionária de carrreira. Demorou para o comando da Fazenda perceber que a leoa era muito menos mansa do que imaginavam no governo. Quando houve o descontentamento, Lina estava com o discurso na ponta da língua. Respondeu à sua demissão com a acusações de negar-se a proteger grandes contribuintes, incomodar a Petrobras e sustentou que a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, em encontro no Planalto, requesitou que fosse mais ágil em investigar os negócios de Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). Dilma negou, mas Lina continuo rugindo.

Ao contrário da chefe, os soldados de Lina agora preferem o silêncio. Luiz Soares nega qualquer influência do governo na Receita em São Paulo. Mas perguntado por ISTOÉ sobre o que o levou a pedir exoneração, respondeu: "A orientação é não falar." A orientação parte de sindicalista experientes. A coordenadorra-geral de Cooperação Fiscal, Fátima Maria Farias, que também encabeça o protesto e pediu afastamento, foi vice-presidente do Unafisco de 2001 a 2003. O coordenadorgeral de Tributação, Luiz Tadeu Matosinho Machado, era diretor jurídico do Unafisco até 2003. E o superintendente da 4ª Região, que abrange o Rio Grande do Norte, Altamir Dias de Souza, ocupou a vice-presidência nacional do Unafisco.

UNIDOS Lina recebeu apoio do Ipea em sua tese de que a queda na arrecadação foi culpa da crise

ALVO Dilma negou encontro com Lina, mas crise na Receita arranhou imagem da ministra para 2010

O excesso de cargos de confiança na Receita abriu a brecha que permitiu o aparelhamento. Levantamento do Sindireceita mostra que o número de cargos de confiança cresceu 50% no ano passado. "Hoje há coordenadores e chefes o ciosos", afirma o presidente do Sindicato dos Funcionário das Receita (Sindireceita), Paulo Antenor de Oliveira. "A crise só vai acabar quando houver um desaparelhamento, o resto é factóide". O novo secretário da Receita, Otacílio Cartaxo, nega as acusações de interferência política e afirma que todas as substituições têm caráter técnico e ocorrem sempre que há mudança no comando da instituição. "A Receita é um órgão de Estado altamente profissionalizado, eminentemente técnico e infenso a ingerências políticas", sustenta Cartaxo.

Para o ex-secretário Everardo Maciel, ao aparelhar a Receita, Lina promoveu uma verdadeira operação desmonte numa estrutura técnica que funcionava bem e tinha conquistado credibilidade. "Quando olho para trás fico muito sensibilizado com o que fizeram com a Receita", lamenta. O que mais irritou Everardo e também o ex-secretário Rachid foi a maneira brutal como a equipe de Lina afastou vários funcionários de carreira eficientes. Demitido sem maiores explicações, o ex-superintendente da Amazônia José Tostes foi encostado numa função subalterna em Belém. Edmundo Spolzino, ex-superintendente de São Paulo, viu-se removido para uma repartição de Campinas. Tomou conhecimento da exoneração pelo Diário Oficial.

"Quando olho para trás fico muito sensibilizado com o que fizeram com a Receita Federal"
Everardo Maciel, ex-secretário

A soma da falta de habilidade da Fazenda e do aparelhamento da Receita é o risco de a arrecadação de impostos cair ainda mais e comprometer as contas públicas e o superávit primário. Mantega espera entregar um superávit de 3,3% do PIB em 2010. E essa meta é fundamental para a continuidade da política monetária. Leia-se redução dos juros. Dentro da Receita, muita gente diz que a instituição vai levar seis meses para voltar à normalidade. Além desta ameaça, fica do episódio uma lição do corporativismo: ele é um leão tão traiçoeiro como os outros.

http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2077/artigo150565-1.htm

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