Fisco cria processos desnecessários no Brasil

Por Raul Haidar*
Com o propósito de multiplicar desnecessariamente a quantidade de autos de infração, agentes do fisco dividem sua ação em enorme quantidade de feitos, lavrando inúmeros autos que poderiam e deveriam fazer parte de um único procedimento.
Com isso, os trabalhos de fiscalização vêm sendo desenvolvidos sem observância dos princípios básicos que os orientam e desobedecem expressas normas constitucionais.
Isso ocorre tanto na atuação do fisco federal quanto em relação aos fiscos estadual e municipal, criando sérias dificuldades tanto para o próprio serviço público como para os contribuintes, chegando a repercutir até mesmo no Judiciário, com a proposição de exagerado número de execuções fiscais.
Uma pequena indústria em São Paulo recebeu a visita de agente fiscal do ICMS que deu início a trabalho de verificação de sua escrita fiscal, onde constatou o lançamento de crédito apontado como indevido porque o fornecedor seria inidôneo. Até aí, tudo bem.
A empresa defendeu-se juntando cópias de provas dos pagamentos, alegando que o fornecedor estava regular no momento da aquisição, quando foram consultados os registros do SINTEGRA, um mecanismo disponibilizado pelo fisco para apurar a situação das empresas. Até aqui, sem novidades.
Todavia, cerca de um mês depois o mesmo fiscal voltou à empresa para nova verificação, desta vez em relação a outro fornecedor, repetindo-se a mesma história: mais uma autuação, outra defesa.
Essas visitas se tornaram rotina na empresa. Todos os meses, durante mais de um ano, lá estava o fiscal, cada vez com uma nova verificação.
Todos nós defendemos uma atuação eficiente do fisco e até mesmo para as empresas é bom que elas sejam fiscalizadas com frequência. Se forem sérias e tiverem cometido alguns erros, elas se corrigem e criam mecanismos mais eficazes de controle de suas atividades. Se a empresa não for séria, por certo ela vai fechar as portas e dar espaço para outra que o seja.
Mas quando o fisco dispõe de informações suficientes para diversas autuações, nada há que justifique que as possa “diluir” ou “fatiar” ao longo do tempo. Isso é ruim para o próprio fisco, porque se o fiscal tem que todo mês visitar uma empresa, quando poderia resolver tudo numa só ocasião, ele aumenta as despesas de locomoção (que a administração normalmente não reembolsa), perde tempo que poderia ser utilizado em outra coisa e o que é pior: cria um novo processo a cada autuação, prejudicando o bom funcionamento do próprio fisco, inclusive com aumento de custos burocráticos.
O fisco federal também comete a mesma insanidade: numa ação fiscal recente lavrou vários autos de infração, quando poderia agrupá-los em um numero menor de procedimentos, facilitando o próprio trabalho do auditor. Nesse caso, depois de lavrar três autos de infração com base nos mesmos fatos e mesmo período, ainda foi lavrado um 4º auto de infração, entregue ao contribuinte cerca de um mês após as primeiras autuações.
Já o fisco municipal em São Paulo é bem mais confuso. Chega ao absurdo de lavrar um auto de infração para cada mês de origem do lançamento, assim viabilizando que num mesmo dia e horário o auditor seja obrigado a preencher dezenas de autuações. Qualquer pessoa que se der ao trabalho de ler as decisões do Conselho Municipal de Tributos no Diário Oficial (publicadas quase sempre aos sábados) ficará espantada com a quantidade de números de autuações que constam dos julgados.
Tudo indica que nesses órgãos de fiscalização exista uma desenfreada mania de multiplicar desnecessariamente a quantidade de autos ou de processos, quem sabe para impressionar pessoas desinformadas (talvez no próprio Executivo) e assim justificar contratação de mais pessoal, ampliação do tamanho da repartição, aumento de salários ou outras vantagens.
Essas autuações repetidas desrespeitam várias normas de observância obrigatória por qualquer funcionário público. A primeira dessas normas é o artigo 37 da Constituição Federal:
“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”
Claro está que inexiste eficiência quando a fiscalização, ao constatar mais de uma infração supostamente praticada pelo mesmo contribuinte e no mesmo período, lavra diversos autos de infração, gerando diversos processos!
No estado de São Paulo vigora a Lei Complementar 939, cujo artigo 8º determina:
“A Administração Tributária atuará em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público, eficiência e motivação dos atos administrativos.”
Não é necessário um grande esforço de interpretação para percebermos que não estão presentes, numa fiscalização de ICMS que se prolongue por muito tempo, vários desses princípios, especialmente os de razoabilidade, interesse público e eficiência.
Não á razoável que o contribuinte seja mensalmente visitado pelo fisco para o desenvolvimento de verificação fiscal de fatos antigos, que poderiam e deveriam estar encerrados rapidamente. Essa demora, essa ação “fatiada”, não atende a qualquer interesse público e nem revela qualquer eficiência.
Quando o fisco verifica a existência de vários fatos iguais (por exemplo: várias notas irregulares) em relação ao mesmo contribuinte , não tem qualquer motivo para deixar de aplicar o principio da conexão.
Quando dois ou mais processos ou causas têm a mesma origem, envolvem as mesmas partes, baseiam-se em provas similares ou obtidas por meios similares, sem dúvida ocorre a figura da conexão, assim conceituada:
“CONEXÃO DE CAUSAS - Assim se diz das causas que se encontram tão intimamente ligadas, em que se nota uma relação tão estreita, que não podem ser conhecidas separadamente pelo julgador, visto que o julgamento de uma vem afetar o conteúdo da outra.” (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Forense, Rio, 2ª. Ed., 1967).
Quando a questão tributária carece ser interpretada devem ser observadas as regras contidas no Código Tributário Nacional, cujo artigo 108 , inciso I, determina que a analogia é a primeira das formas de interpretação que devem ser utilizadas. A analogia “realça a igualdade jurídica ao dispor que situações análogas mereçam tratamentos idênticos”, conforme registra Sergio Feltrin Corrêa, desembargador do TRF-2, na obra coletiva Código Tributário Nacional Comentado (Ed. Revista dos Tribunais, S.Paulo, 3ª edição, 2005, pg. 537).
Ora, se há vários autos de infração que resultam de uma mesma ação fiscal, são elaborados pelo mesmo agente fiscal, relacionam-se com o mesmo estabelecimento/contribuinte, deve-se observar o princípio da eficiência, contido no artigo 37 da Constituição Federal já anteriormente transcrito.
Ao multiplicar indevidamente autos de infração, o fisco está tumultuando seu próprio trabalho e também a defesa do contribuinte. Seria o mesmo que, em matéria penal, a pessoa que cometa vários crimes ao mesmo tempo, pudesse responder a vários processos, respondendo a várias acusações separadamente.
Por falar em matéria penal: quando um auto de infração após o julgamento administrativo é mantido, pode viabilizar a abertura de um inquérito policial e este resultar em processo criminal.
Assim, contra os dirigentes de uma empresa podem ser instaurados diversos inquéritos policiais e poderá ele ser alvo de várias denúncias criminais, embora tenha praticados atos que, mesmo ilícitos, deveriam ser apurados num único processo.
Essa falta de bom senso já está lotando todos os espaços da Delegacia de Crimes Fazendários em São Paulo, criando esforços enormes para obter resultados pífios, com evidente prejuízo para o Estado.
Os atos administrativos feitos sem obediência aos princípios constitucionais tornam-se ilegítimos. Processos tributários que resultam de autos “fatiados” revelam o desprezo do fisco pelas normas básicas da Carta Magna. Essas formas estranhas, inconvenientes e mesmo imorais de autuação (pois objetivam apenas prejudicar o contribuinte) não são atos administrativos, mas meros tumultos fazendários.

 

*Raul Haidar é advogado tributarista, jornalista e membro do Conselho Editorial da revista Consultor Jurídico.

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